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  • Foto do escritorTalita Ibrahim

os irmãos taliberti

Atualizado: 26 de jun. de 2021

Data: 20/07/2020

Autora: Talita Ibrahim


Tenho a minha frente o enorme desafio de contar a você a história de dois defensores de direitos humanos e como isso mobilizou a vida de um grupo de pessoas, inclusive a minha. Trechos dessas duas histórias eu ouvi de amigos e familiares, pois seus protagonistas já não estão mais vivos para me contar.


Este texto não tem a pretensão de se tornar a biografia de suas histórias, mas sim, narrar um caso que teve muitos desdobramentos e que depois de um ano continua a ter na vida das pessoas próximas à Camila e Luiz. Eram irmãos.


Irmãos que não se viam há alguns anos, pois Luiz morava na Austrália e tinha voltado ao Brasil para anunciar seu casamento e a chegada do Lorenzo, seu filho com Fernanda, grávida de 5 meses.

Era um momento importante na vida do Luiz, que na escola não se dedicava muito aos estudos, mas que na faculdade de arquitetura revelou sua grande paixão pelas artes. Era um grande apreciador das obras de seu primo artista e, sempre que podia, compartilhava com os amigos.

A relação entre Luiz e o grupo de amigos do colégio era regada de cumplicidade. Era uma amizade infantil, no sentido de ser algo despretensioso. Onde o que estava em jogo era a amizade e a brincadeira, não haviam interesses.


Além da arte, havia uma conexão muito forte entre ele e a natureza, aprendeu a surfar pouco depois que seus amigos, então nunca ficou de fora das idas para o Litoral Paulista. Entre o grupo de amigos da escola, a música era assunto comum. Na estrada escutavam – “Êh, ô, ê, vida de gado. Povo marcado. Êh, povo feliz.” de Zé Ramalho.


Ainda na faculdade, trabalhou na sua área de estudo, já decidido que não era esse o estilo de vida que queria, resolveu que como os amigos era hora de ter sua experiência fora do país. Já na Austrália, fez alguns cursos e devagar construiu sua carreira na arquitetura, já havia ganhado dois prêmios importantes e havia sido recentemente nomeado diretor da empresa.


Sua mãe, Helena, me disse que foi essa conexão com a natureza que o fez se especializar em arquitetura sustentável e ir para Austrália. Mas confessou a seu amigo, Enrico, que queria voltar dali alguns anos para o Brasil.


Foi difícil para a Camila, no começo, aceitar a ida do irmão para a Austrália. Ela questionou sua decisão de sair do seu país para trabalhar em outro. Isso diz muita coisa de quem era essa mulher, porque a meu ver, Camila carregava uma responsabilidade ética e moral para os assuntos relacionados as minorias, principalmente quando a pauta eram as mulheres.


Ela e Cecilia, sua amiga de infância, mesmo depois da separação natural que veio quando a Camila foi fazer filosofia e por algum motivo resolveu trancar e fazer direito e Cecilia cinema. Elas mantinham conversas sobre as questões mais profundas da alma, sobre política e sociedade. Um fato curioso, é que como trocavam muitas matérias e textos, elas tinham muitas dessas conversas por e-mail.


Uma das últimas conversas que Cecilia tem registro, é sobre as eleições de 2018. Ela e Camila fizeram uma “colinha” das deputadas que iriam votar. Tinham um grupo de WhatsApp, só entre as duas, onde podiam expressar sua opinião política livremente.


O que se sabe era que Camila trabalhava em um grande escritório de direito em São Paulo, era especialista em direito digital. Aos sábados ia para alguma comunidade como voluntária para prestar assessoria jurídica gratuita, principalmente a mulheres vítimas de violência no bairro do Valo Velho, em São Paulo.


Perguntei a Cecilia - Qual seria o sonho de carreira da Camila? Ela suspeitava que tivesse sido Defensoria Pública, onde havia estagiado por dois anos. Essas informações foram muito importantes para entender a atitude dela diante de uma situação nesse escritório que trabalhava.

Rolava uma conversa de corredor de que uma mulher prestes a assumir um cargo importante no escritório, lugar ocupado por uma maioria masculina, não havia sido escolhida. Um dia, Camila se aproximou da única associada mulher e se posicionou dizendo que achava injusta a posição do escritório e que ela deveria oferecer sororidade (tradução desta palavra pela Cecilia pra mim: dar suporte para outra mulher brilhar).


Eu nunca havia escutado a palavra, e foi nesse momento que entendi essa habilidade que ela tinha de dialogar, traduzindo em apenas uma palavra um conceito tão humano. Camila sabia usar termos jurídicos quando era preciso, mas tinha uma grande habilidade de se relacionar e adaptar sua fala nos diferentes grupos que convivia. Talvez por isso ela tivesse acabado por construir amizades tão diferentes entre si.


Tenho a impressão que os irmãos Taliberti se completavam, cada um em seu espaço de tempo e de compreensão, mas o meio ambiente e o social tinham lugar de destaque na forma de viver de cada um. Talvez hoje, se ainda vivos, teriam explorado ainda mais tal vontade de atuar por uma sociedade mais justa e pela preservação do meio ambiente.


É incrivelmente louco pensar a forma como os dois morreram, uma tragédia nacional, que não só levou Camila, Luiz, Fernanda, Lourenço, o pai deles e a madrasta, mas também outras 272 pessoas, 11 delas ainda não encontradas. E quantas dessas, assim como esses dois irmãos, também não seriam voluntários, doadores e prestavam seu olhar generoso para os problemas e dificuldades dos outros.


No dia 25 de Janeiro de 2019, a família havia desembarcado em Minas Gerais para conhecer o famoso museu a céu aberto Brasileiro, o Inhotim. Era uma vontade grande do Luiz conhecer as obras e ver a acomodação que elas tinham em meio a 786 hectares de pura Mata Atlântica.

Haviam escolhido se hospedar na única pousada contruída dentro da rota dos 12 milhões de metros cúbicos de lama que destruíram a zona quente (termo usado pelo Corpo de Bombeiros ao se referir a região devastada pela lama), devido ao rompimento da Barragem do Córrego do Feijão.


Neste momento, fecho meus olhos e tento imaginar o momento em que eles foram subtraídos de seu estado e levados pela lama até a água evaporar e só restar terra e minério.

Será que estavam tomando café? Será que a Fernanda estava com Luiz no quarto? Será que a Camila estava na piscina? Abro os olhos rapidamente. E vejo o hoje.


- “Fico esperando eles entrarem pela porta da frente”, confessa Helena. Ela se viu tendo que rever a si mesma e sua relação com seus filhos, construída com muito amor durante todos esses anos. Sendo capaz de ouvir o pedido e a indignação da família e de amigos que Camila e Luiz construíram.


Talvez ela sem entender muito bem a importância do ato de criar o Instituto Camila e Luiz Taliberti, concedeu a seus filhos sua maior prova de amor. Que na dor e na perda mais profunda, que não consigo em palavras alcançar, revela a essência de seus filhos através da ressignificação de sua própria vida.


Vagner, que conviveu com os meninos desde os oito anos, também perdeu dois filhos e não mede palavras para destacar a importância dos amigos nas vidas de Camila e Luiz, como se fossem sua extensão. Compreender e dar valor a tamanha extensão fez com que criassem esse trabalho de mobilização coletiva como continuidade de um legado que imortalizou os princípios e valores desses dois defensores de direitos humanos.


Depois dessa tragédia que matou milhares de animais, devastou parte da mata e levou embora mais do que vidas, hoje, o Instituto Camila e Luiz Taliberti une centenas de voluntários, amigos, familiares, no intuito de promover a defesa de grupos vulneráveis, principalmente mulheres, bem como a proteção do meio ambiente.


Para conclusão, procuro pensadores para me apoiar, e Malala, a paquistanesa que levou um tiro do Talibã, pois queria estudar, surge em meus pensamentos dizendo – “Só percebemos a importância da nossa voz quando silenciados.” Fico pensativa: Afinal, o ativismo nasce de um corpo esgotado, onde o silêncio não opera mais?


Leio com cuidado outro pensamento de Pat Speight, que revela – “Uma história é a menor distância entre as pessoas”. Reflito: A mudança provocada por um corpo não mais silenciado, sustenta uma narrativa coletiva?


E por fim, Noam Chomsky, estudioso americano do campo da linguística moderna, continua a me intrigar quando diz – “Se você vai a um protesto e depois vai para casa, já fez algo. Mas aqueles que estão no poder podem sobreviver a isso. O que eles não suportam é pressão constante e crescente, organizações que não cessam, pessoas que seguem aprendendo com o que fizeram e fazendo melhor nas próximas vezes.” Me ponho a perguntar, mais uma vez: Quem faz pressão? É um individuo isolado com sua narrativa ou a narrativa de um individuo isolado organizada por um coletivo?


A todo momento em que escrevo este texto, tamanho é o meu cuidado em equilibrar a dor de uma família, sem deixar de lado a importância de refletir a cerca de um modus operandi social atual. Dois irmãos, que literalmente silenciados pela lama, provocaram mudanças na vida de um coletivo, que organizado é capaz de gerar mobilização e até certo ponto criar tensão.


o passa despercebido a mim quando Helena diz ao se referir aos responsáveis pela tragédia – “Não adianta mais ficar eles lá e nos aqui, nós somos bons e eles não, ou vice-versa. Esta vibração não faz mais nada! O que faz é o nós e eles!” Me questiono assim que escuto suas palavras – “A pressão que o ativismo faz ao libertar um corpo silenciado, seria a mesma pressão capaz de silenciar outros corpos?”


Meu querido amigo e Professor William Ury, que sempre que pode nos lembra – “O que nos une é maior do que aquilo que nos divide”. Um dos grandes desafios de nosso século tem sido coexistir com nossas diferenças. Mas, afinal, que relação isso teria com o ativismo? Toda, eu diria! A história humana talvez esteja carregada de familiaridades, as relações podem ser construídas e mantidas justamente por essas similaridades. Porém muitas vezes não compreendemos as profundezas de nossas semelhanças, e sim olhamos pela superfície de nossas diferenças e é nelas que vivemos, é nelas que silenciamos e somos silenciados.


Em tudo podemos encontrar um significado, assim como este texto, que busca homenagear a memória de duas pessoas defensoras de direitos humanos. Celebrando acima de tudo a amizade como extensão da ação coletiva, e deixando a você a seguinte reflexão: Seria possível, aprimorar o ativismo? Sendo ele capaz de revelar nossas semelhanças com quem nos silencia, diminuindo a distância de tempo e espaço para a resolução de problemas?

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Talita Ibrahim é capacitada em negociação internacional e resolução de conflitos pela Universidade de São Paulo, mediação de conflitos, justiça restaurativa e formada em Relações Internacionais. Há dez anos é Gestora da Organização Abraham Path no Brasil, que promove o desenvolvimento econômico na região do Oriente Médio. No passado atuou em outras organizações políticas, sociais e também bilaterais. Em 2019 foi convidada para participar como facilitadora no processo de indenização do rompimento da barragem de Brumadinho. Após uma cuidadosa pesquisa, decidiu por não seguir no processo. Está experiência resultou no início de sua empreitada na escrita. Na ocasião escreveu dois artigos e continua a escrever sobre conflitos humanitários e familiares, acesse para saber mais www.talitaibrahim.com


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